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terça-feira, 11 de setembro de 2012

Silêncio na sala de leitura

Quando há uma semana me perguntaram se me sentia discriminada, pensei durante uns segundos e respondi que não. Sentada à mesa depois de um debate sobre poliamor, e rodeada das perguntas que não se fazem em público mas que surgem em catadupa numa conversa de café, respondi com singeleza e alguma perplexidade. A verdade é que as minhas experiências de coming out são quase todas positivas ou fantásticas. Mal sabia eu que havia de pagar pela boca uma semana depois. Num jantar combinado para receber uma nova hóspede, foi-nos servida uma conversa que teríamos dispensado mas que tentámos conduzir com a serenidade possível. 
Neste momento somos quatro cá em casa. Mas o espaço e a renda dão para cinco, por isso temos recorrido ao Airbnb para usufruir da experiência social do Couchsurfing, aliada à vantagem monetária agora tão necessária. Em poucos meses recebemos quase 40 pessoas, de todas as idades e nacionalidades, e o nosso perfil do Airbnb está cheio de elogios e recomendações entusiastas. 
No início um de nós perguntou se deveríamos avisar que somos uma família "diferente". Eu achei que fazia tanto sentido alertar para isso, como para o facto de sermos consumidores massivos de torradas e ser quase certo encontrar a cozinha cheia de migalhas. Sim, é uma coisa com que se poderiam cruzar ao pequeno-almoço. Um beijo de bom-dia aqui e outro ali. Sim, poderia ser diferente e estranho. Mas continuo a achar que as migalhas são mais incómodas do que ver uma pessoa a beijar uma e depois outra. A vida que os nossos hóspedes levam, dependendo de cada um, cruza-se com a nossa num jantar, em frente à televisão (sim, somos tão aborrecidos como as famílias "normais", onde quer que elas andem), ou a maior parte das vezes apenas no dia em que chegam. 
Desta vez fizemos um esforço extra, porque a rapariga era portuguesa, jovem, e ia ficar três semanas, enquanto se adaptava ao novo trabalho na capital e procurava casa definitiva. Ao jantar, por entre a conversa de boas-vindas e os esforços de a fazer sentir-se confortável, veio a pergunta "Então e onde é que vocês se conheceram?". Tentámos evitar a resposta que sabíamos não ser simples, mas ela não nos deixou ficar pelas frases lacónicas. E eu sempre com sérias dúvidas sobre se a nossa vida privada teria realmente relevância para a sua vida quotidiana. 
Seguiu-se o que não nos apetecia. Uma sessão de perguntas que variou entre o simpático e o excruciante. Pelo meio, uma declaração frontal de que tenho dois namorados, e uma reação de espasmos, engasganços, olhares aterrorizados. Julgo até que vi tremuras. Pânico puro, que foi cuidadosamente disfarçado por ela, entre rasgos de inteligência e lucidez, e tiradas constrangedoras de (i)lógica religiosa. Foi a primeira vez que ouvi alguém falar de "verdade absoluta" como se fosse uma coisa boa. 
Vou poupar-vos aos pormenores e contar já o fim. No dia seguinte a nossa hóspede ligou ao pai para a vir buscar, pegou em todas as armas e bagagens com que chegou e foi-se embora. Por não conseguir lidar com "novas realidades".
 As nossas reações variaram apenas no grau de abertura de boca. Eu lembrei-me da conversa da semana anterior, de quando tinha dado voltas à cabeça para me lembrar de uma reação negativa ao poliamor e não tinha conseguido. Lembrei-me de todas as pessoas que ao longo dos anos me disseram que Portugal não é Lisboa e que subestimava a influência (ainda bem viva e de saúde) da Igreja e da ditadura. E decidi que não voltaria a falar com aquela singeleza, sem explicar ao interlocutor que me rodeio dos mais variados tipos de pessoa, mas que todas elas têm, provavelmente, em comum, o facto de se moverem em círculos em que se considera a aprendizagem algo positivo e não ameaçador.

4 comentários:

  1. Fiquei triste com esta história... Estou convencido que, se a moça tivesse conseguido ultrapassar o seu preconceito e tivesse convivido convosco durante o período inicialmente previsto, teria no final saído enriquecida da experiência.

    Todos nós somos preconceituosos. O admirável é quando conseguimos ver para além do preconceito, e aceitar como natural que os outros tenham outras opções de vida e convicções diferentes das nossas. Quando conseguimos ter essa abertura de espírito (que é muito mais difícil do que parece), rapidamente começamos a ver o mundo de outra maneira e também a questionar as nossas convicções. E aprendemos coisas novas!

    Respeito e admiro quem tem opções de vida diferentes da minha que por seu lado respeita as minhas e me aceita tal como eu sou. A moral e a ética não são absolutas, e estou convencido que alguém educado, esclarecido e inteligente sabe distinguir o bem do mal e o certo do errado.

    Aprender, questionar, todos os dias escolher de novo (mesmo que seja escolher não mudar) e ser livre: livre para escolher, pensar e expressar.

    A rapariga da historia ainda e jovem. Espero que a vida a ensine e que consiga encontrar o caminho para essa liberdade, que comece a perceber que não há absolutos e que a bondade, o amor e o valor têm muitas formas. Sei que quando isso acontecer será como o levantar de um nevoeiro e um mundo novo e maravilhoso se revelará. E ela será certamente mais feliz.

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  2. Olá Roy! Obrigada pelo longo comentário. Concordo com tudo.
    Só não tenho a certeza de que liberdade signifique felicidade para todas as pessoas, e é isso que me assusta, mas tento compreender.
    Este episódio foi duro porque nos envolvemos emocionalmente. Expusemo-nos, pusemos as tripas em cima da mesa, e sentimo-nos defraudados. A primeira coisa em que pensei quando acordei foi em enviar-lhe uma mensagem a desejar boa sorte para o primeiro dia de trabalho, e foi um choque saber que tinha pegado em tudo e ido embora.
    Gosto de acreditar que esta experiência foi, para toda a gente, mais positiva do que negativa. Mas ainda ando a tentar encontrar uma maneira de falar sobre estas coisas sem me pôr tanto a jeito para os julgamentos desenfreados.

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  3. Olá, como entendo o teu sentimento!
    Quando um dia destes me reencontrei com uma amigo antigo e que muitas vezes me fez querer ficar junto....e estamos num ambiente tão bom ele me disse "eu não sou capaz de estar contigo assim!" Guardo apenas a sensação que aquilo que as pessoas querem e por vezes tão diferente daquilo que as pessoas acham que querem... :(

    Lígia Ramos

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  4. Olá, Roy. Sou do Brasil,monogâmica e acho q temos o direito de viver como achamos melhor. da maneira q nos faz feliz. Tenho amigos que vivem uma relação de poliamor e brinco c eles ao dizer q os acho seres iluminados. Uma relação poliamorosa, vejo eu, é uma relação onde o amor supera qq sentimento mesquinho como a insegurança, que gera nosso terrível ciúme. Por isso a Iluminação a qual me refiro, pq vcs travam uma luta diária não só c a sociedade, mas tb com vcs mesmos. A minha opção pela monogamia se dá justamente pq ainda não encontrei uma maneira de derrotar meus monstros interiores Pq no fundo sei q o amor não é exclusivo e se multiplica. Quem sabe um dia? Um super bjo, q a felicidade sussurre sempre em seus ouvidos e q vc possa sempre ouvi-la!

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